quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O medo da cegueira

Há um pouco mais de um mês, estava eu à toa, zapeando os canais de TV, numa típica e tediosa noite de domingo, quando identifico duas personalidades que admiro bastante: Marcelo Tas e Leandro Karnal, respectivamente, um entrevistando e o outro sendo entrevistado. Era a reprise do programa #provocações, que, atualmente, vai ao ar às terças-feiras, às 22h, na TV Cultura. 

O assunto era sobre a Independência do Brasil, em razão do dia 7 de setembro. Conversa vai, conversa vem (aliás, um papo bem agradável e interessante – vou deixar o link ao final do post para vocês conferirem), mas o que, de fato, me chamou a atenção foi a revelação de Leandro Karnal na volta de um dos intervalos: o medo de ficar cego.

Na verdade, o que me deixou realmente intrigada e me motivou a escrever este texto foi a justificativa do historiador ao dizer que a ideia de ficar cego o assustava porque, sem os olhos, não poderia fazer muitas das coisas que gosta, como ler ou escrever.

O mais curioso é que, mais adiante, quando questionado por Marcelo Tas, Leandro Karnal diz o seguinte:

O medo é a chave do não-conhecimento

Diante desta afirmação, chego à conclusão de que a chave do não-conhecimento não abre somente a porta do medo, mas, também, a do preconceito. Não estou dizendo que Leandro Karnal é preconceituoso, de forma alguma, mas sim que uma coisa leva a outra. 

Deixando de lado os assuntos kármicos do entrevistado, o que estou tentando colocar em pauta aqui para uma reflexão é que o medo de ficar cego chega de mãos dadas com tudo aquilo que carregamos de preconceitos e pré-conceitos ao supor que sem a visão não será mais possível fazer o que antes fazíamos.

Há muito tempo não escrevo neste blog e, como o próprio nome diz, eu tenho retinose. O que isto quer dizer? Quer dizer que tenho uma doença sem cura, sem tratamento, progressiva e que... já avançou o suficiente para que eu deixe de fazer muitas das coisas que eu gostava de fazer. 
Por anos, a ideia de ficar cega me assombrava, até que resolvi abrir esta porta e me preparar para o que me aguardava do outro lado.

Mas, então... eis que surgem as perguntas: o medo de ficar cego ou cega é concreto? Nós realmente deixamos de fazer o que fazíamos?

Resposta: sim.. e não.

Sim, deixamos de fazer as coisas COMO fazíamos antes. Ou seja, deixamos de fazê-las da mesma maneira. É claro que agora já não consigo mais ler um livro ou um simples panfleto entregue na esquina. 
Não enxergo mais o que eu mesma escrevo.  Os medos de Karnal são reais sim. Se ele ficar cego, de fato, não poderá mais fazer estas coisas. Não da maneira tradicional. Entenderam? Não fará como antes, mas, de uma forma adaptada, fará!

Agora, outra questão: se as portas do medo e do preconceito são abertas pela chave do não-conhecimento, qual será a chave capaz de fechá-las? Parece óbvio, mas talvez não seja assim tão fácil de assimilar: sim, é a chave do conhecimento! Isso pode não diminuir o seu medo, mas o fará refletir sobre o que pensa a respeito deste sentimento. 

Confesso que, durante anos, principalmente os subsequentes ao meu diagnóstico, esse medo permeava meus pensamentos. Como dizem, nós nunca saberemos se somos capazes de enfrentar uma situação se não a vivenciarmos. Eu também tinha esse medo de ficar cega, justamente, porque não tinha conhecimento. 

Realmente, após a cegueira, não podemos mais ler, não podemos mais escrever cursivamente com nossas próprias mãos (ah, como eu adorava minhas canetas!). Mas, é aí que entra a chave do conhecimento: não precisamos deixar de fazer o que fazíamos antes! Caso contrário, eu não estaria aqui, redigindo este texto, utilizando o meu computador adaptado, com o teclado cheio de adesivos para saber onde estão as teclas dos acentos e com o leitor de telas ativado para verificar se não tive nenhum momento de dislexia ao digitar, 

O que estou querendo dizer é que o medo de algo que não conhecemos é real, mas que nunca devemos achar que a vida não continuará depois disso, que a vida vai mudar a ponto de imprimir o rótulo de incapaz em nossas testas.

Uma coisa que me deixa extremamente angustiada é a maneira como a sociedade encara a deficiência. Imagina-se que, quando uma pessoa passa pela “porta” que a separa da vida “normal” para a vida como uma pessoa com deficiência, os desinformados tendem a achar que essa porta é tipo aquelas filas da alfândega, em que você deixa tudo para trás, sem levar nada que estava carregando consigo. É como se o fato de passar pelo raio-x fosse uma forma de dizer que tudo que você carrega consigo não vai mais servir do lado de lá.

E é aí que encontramos também a chave do preconceito, pois, achar que uma pessoa com deficiência não será mais capaz de realizar o que realizava anteriormente é uma tremenda falta de informação, ainda mais na era da tecnologia em que vivemos hoje! E outra coisa: a pessoa só deixou de enxergar! Todo o resto funciona, inclusive o cérebro.

Me admira que alguns cidadãos ainda achem que uma pessoa com deficiência visual não é capaz de utilizar um celular, um conputador, escrever, saber para onde está indo ou, até mesmo, ler! Sim, ler! É claro que não lemos mais como antes. Aquela sensação boa de cheirar as páginas de um livro novo se reinventam! Inclusive, continuo cheirando livros... kkk 

Para quem está se perguntando “como faz então?, vou dizer algumas formas de se fazer a leitura de um livro sem usar a visão: 

1.    utilizando um aplicativo no celular ou tablet que reconhece textos e os transforma em áudio;
2.    utilizando dispositivos de tecnologia assistiva criados especialmente para este fim (transformar texto em áudio);
3.    utilizando leitores de tela do computador ou celular que leem textos (neste caso, é preciso que o livro seja digital ou em formato pdf);
4.    usufruindo de audiolivros disponíveis em instituições, em algumas bibliotecas acessíveis ou em vídeos no YouTube.

A tecnologia é uma grande aliada. Se existia um estereótipo de que cego não faz nada, este estereótipo já caiu por terra há muito tempo! Sabia não?
Existe, sim, vida após a cegueira! Basta se reinventar, se adaptar e reaprender a viver!

Observação:
Se você tem uma voz bacana, tem uma boa dicção e gosta de fazer leituras em voz alta, que tal criar um canal no YouTube e ler livros para pessoas com deficiência visual? Para quem não sabe (mais uma vez, a tal da chave do não-conhecimento), quando uma pessoa posta conteúdos em formato de audiolivros, sem fins lucrativos, apenas com o intuito de proporcionar inclusão, não são cobrados os direitos autorais da obra. Existe uma lei que garante isso. Se você está aí, à toa, sem ter o que fazer num sábado ou domingo à noite, pensando que precisa fazer algo para justificar a sua existência na Terra, que tal criar um audiolivro?


PS 1: Marcelo Tas e Leandro Karnal: adoro vocês!

PS 2: Cidadão de bem: nunca dúvide ou subestime a capacidade de uma pessoa com deficiência. Sei que, conscientemente, niguém quer pensar desta forma, mas, tenho certeza de que, em algum instante ou milésimo de segundo, passou pela sua cabeça será que é ela mesma que está escrevendo?” e que junto a este pensamento há uma remota possibilidade de seus devaneios terem sido acompanhados pelo sentimento de piedade “que pena que ficou cega”. Mude alguns destes conceitos.



PS 3: se você, assim como o Leandro Karnal, tem medo de ficar cego, principalmente, pelo fato de ter Retinose Pigmentar ou qualquer outro tipo de distrofia que o tenha trazido até o meu blog, um recado: dá para viver, mesmo depois de perder a visão! Basta se adaptar e não permitir que os obstáculos te levem a se esquecer da bagagem que acumulou até agora! Se o medo é a chave do não-conhecimento e ficar cego é o seu maior medo por não saber o que te espera, então, prepare-se! Conheça o universo de uma pessoa com deficiência visual, conviva com gente que não enxerga mais, troque experiências, aprenda a lidar e a utilizar as tecnologias assistivas, encare essa experiência como algo que vai te trazer mais conhecimento, não como algo que vai fazer você cair num buraco profundo por ter que aceitar algo que talvez seja inevitável! 

Assista ao programa